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                           O jogo de tranca na colônia de pesca Z-13 (*)



Segundo seu Nonô, um dos mais antigos e respeitados pescadores da colônia, a mesa de tranca foi fundada
ali mesmo no Posto 6 em Copacabana há mais ou menos uns 30 anos por ele, Renato Cacá, Caetano e Farofa.

No início eles jogavam na praia e quando chovia iam jogar debaixo da marquise da extinta TV Rio, que ficava
onde agora é o prédio de um hotel de luxo.

A mesa do jogo de tranca está completamente integrada ao dia a dia da colônia de pesca e mesmo para os
que não participam do jogo ela é uma das referências sociais do local. O espaço em volta da mesa é mais um
dos locais de reunião dentre os vários existentes no território da colônia. Até os que não têm o hábito de
frequentar a mesa de tranca sempre dão uma parada para se distrair olhando o jogo ou vem ali conversar com
algum dos participantes do jogo e da assistência que fica em volta da mesa. Diversas questões relativas à
colônia de pesca e ao trabalho no mar são discutidas em torno da mesa de tranca, pois muitas vezes tem um
pescador jogando, na assistência ou em ambos os lugares.

O fato de a fundação da mesa ter sido feita com a participação do Nonô, um dos mais antigos e respeitados
pescadores da colônia, dá a este grupo uma situação de destaque no local sem que isto signifique, aparente-
mente, que o grupo tenha algum privilégio especial.

O grupo que joga tranca na colônia de pescadores Z-13 no Posto 6 parece bastante coeso. Todos se conhecem
e aparentemente há muito tempo. Muitos parecem ser amigos de longa data e alguns, pelas histórias relatadas,
pescavam juntos em outras épocas. Como a maioria mora em Copacabana ou no Posto 6, seja na favela ou no
asfalto, alguns destes relacionamentos podem ter sido iniciados devido ao fato de muitos morarem no mesmo
bairro e frequentarem os mesmos locais.

Os pescadores entram no jogo geralmente após chegar do mar, arrumar os barcos e terminar todos seus afaze-
res ligados ao trabalho. Isto acontece normalmente entre 9:30 e 10:30 horas da manhã, que é aproximadamente
a hora que a mesa é armada e o jogo começa. Talvez, quem sabe, o horário de início do jogo tenha relação com
os horários da colônia de pesca. Já os outros jogadores, em sua maioria senhores aposentados, chegam à colô-
nia perto da hora de se iniciar o jogo de tranca, mas algumas vezes aparecem mais cedo e ficam conversando.

A integração entre as pessoas no jogo, incluindo os que ficam em volta da mesa assistindo às partidas, é muito
grande. O tratamento é de velhos amigos ou conhecidos e as discussões nunca assumem um tom de inimizade
ou rancor. As brigas ocorrem como em qualquer jogo e as gozações e brincadeiras são geralmente recebidas
com bom humor e alegria. Pessoas da família como netos, filhos e companheiras aparecem algumas vezes, são
recebidas por todos como se fizessem parte do grupo e parecem ser conhecidas de todo mundo. O relaciona-
mento entre as pessoas, mesmo sendo de classes sociais distintas, é de igual para igual, não fazendo diferença
se a pessoa é pescador ou comerciante, se mora na favela do Pavão ou em um apartamento em Copacabana.
Ali, na mesa de tranca e em volta dela, não se nota nenhuma discriminação entre as pessoas apesar de as
diferenças não serem ignoradas.

Todos os participantes parecem se identificar com o espaço da colônia de pesca, pois aqueles que não vivem
da pescaria são pessoas que frequentam o local há algum tempo, gostam de pescar e entendem do assunto,
chegando a conversar de igual para igual com os pescadores sobre assuntos relativos à pesca e ao mar. Os
que não são pescadores, nem profissionais nem amadores, se consideram pescadores honorários devido ao
tempo que frequentam o Posto 6 e a colônia de pesca Z-13.

Algumas das pessoas que ficam em torno da mesa assistindo às partidas de tranca nunca jogam, ou pelo menos
não foram vistas jogando, mas entre elas muitas estão sempre por ali e fazem parte do grupo se sentindo
completamente integradas ao ambiente da mesa. Os que aparecem de vez enquando ou esporáticamente nunca
são, aparentemente, olhados com estranheza pelos participantes habituais. Até alguns vendedores ambulantes
param por algum tempo o seu trabalho e ficam por ali olhando e comentando o jogo.

Desta maneira o jogo de tranca cumpre o papel de desenvolver o relacionamento social entre pessoas de classes
sociais diferentes e serve também de lazer para pessoas da terceira idade, sendo assim novamente um fator de
integração e sociabilização. Os participantes do jogo, tanto na mesa quanto na assistência, se comportam e
sentem todos como participantes de uma grande família.

O jogo possui alguns rituais como, por exemplo, o da armação da mesa que é colocada sempre exatamente no
mesmo lugar e montada da mesma maneira, mas esta operação pode ser realizada por qualquer um dos
participantes. Apesar de ser sempre o mesmo todos os dias, este local é considerado um espaço de todos e
qualquer pessoa é bem recebida na roda que se forma em torno da mesa para assistir às partidas. Para jogar
no entanto existem algumas "formalidades" a serem cumpridas que são: ser conhecido ou apresentado por
alguma pessoa do grupo e saber jogar tranca razoavelmente.

A única regra observada, além das regras do jogo de tranca em si, foi a de que a dupla que perde cede o lugar
para uma dupla de fora. Mas esta regra não é rígida pois algumas vezes, dependendo das necessidades, ela não
é seguida.

A situação geográfica da colônia de pesca Z-13 no bairro de Copacabana cria um ambiente que fica virtualmente
isolado da agitação e da confusão da cidade. Desta maneira o espaço da colônia como um todo tem o clima de
uma cidade pequena à beira do mar onde existe tranquilidade, o tempo passa devagar e as pessoas todas se
conhecem. O local muito arborizado tem uma grande área de sombra proporcionada pelas amendoeiras, que
aliada à proximidade do mar torna a temperatura agradável mesmo nos dias mais quentes do verão carioca.
Isto tudo favorece o convívio social, atrai as pessoas e faz com que elas se sintam bem neste espaço, mesmo
quem está trabalhando nos afazeres ligados à pesca. Por tudo isto o local acaba sendo escolhido também para
descanso, para passar o tempo e para as atividades de lazer. Todos parecem gostar de estar ali e os frequen-
tadores habituais acabam se identificando com o local, não só pela ligação que possam ter com o mar e a pes-
caria, mas também porque ali são conhecidos por todos, ou quase todos, encontram os amigos e se reúnem com
os companheiros de algum grupo ao qual estão eventualmente ligados e aonde se sentem valorizados.




(*) As imagens apresentadas fazem parte do conjunto de fotografias feitas durante o trabalho de campo
da monografia "Formas de Sociabilidade - O jogo de cartas na colônia de pesca Z-13 em Copacabana"
que foi apresentada como trabalho final no curso de pós-graduação Lato Sensu
"Fotografia como Instrumento
de Pesquisa nas Ciências Sociais"
, realizado durante o ano de 2003 na Universidade Cândido Mendes na cidade
do Rio de Janeiro. Durante as visitas e entrevistas na Colônia Z-13 foram feitas 154 fotografias e 24 foram
incluídas no trabalho.